Stefan Kaegi: o teatro em trânsito

Von Duran Antonio Luiz

10.10.2014 / Revista Teatro

O jovem criador suíço Stefan Kaegi é um globe-trotter. Seus trabalhos, no limite entre a performance, a instalação e o teatro, podem acontecer em São Paulo, Buenos Aires, Salvador, Zurique, Berlim, Sofia, Hannover, Lisboa, Rio de Janeiro, ou onde mais os projetos o levarem. O interessante é que, a partir de algumas características do lugar onde a obra vai ser criada, Stefan e seus parceiros formulam questões que serão tematizadas pelo espetáculo, cujo processo de elaboração é parte essencial do resultado e transparece com clareza nas apresentações.

Além de integrar o Rimini Protokoll, associação de diretores com sede em Berlim, Stefan tem trabalhado muito freqüentemente em parceria com a argentina Lola Arias, na criação de espetáculos teatrais. A idéia de autoria artística é colocada em questão em sua obra não apenas pelo fato de Stefan produzir em conjunto com outros diretores, mas, sobretudo, porque o desenvolvimento do roteiro e do texto é partilhado pelos performers, atores e não-atores. Isso gera um interessante trabalho de dramaturgia, no qual se superpõem os dois sentidos da palavra (criação do material textual e do conceito do espetáculo).
Além de percorrer o mundo, Stefan faz com que o cerne de algumas de suas obras seja o estar em trânsito, como acontece com Cargo Sofia, longa viagem de dois caminhoneiros búlgaros em diferentes trajetos pela Europa, ou Matraca Catraca, que acontece durante um percurso de ônibus em Salvador, Bahia.
O trabalho de Stefan Kaegi recoloca em questão, com extrema acuidade, os parâmetros da contemporaneidade teatral. Temas que são, num certo sentido, “objetos achados”, são desenvolvidos por performers, profissionais ou não, alguns deles também “achados”, que põem na berlinda o sistema teatral, confrontando-o com a necessidade de se inserir cada vez mais nos espaços públicos e na reflexão política sobre o real. Mas isso é feito teatralmente, por meio de recursos que não perdem, entretanto, sua conexão com a realidade extra-teatral.


P. – Como você definiria seu trabalho: performance, intervenção, espetáculo?

R. – Teatro. Mesmo se, formalmente, meu trabalho às vezes se afasta muito do palco e funciona sem atores treinados, acho importante insistir neste termo. O “mobile phone theatre” Call Cutta tem um espectador só que, a cada 10 minutos, é guiado por zonas de Berlim por uma voz de um voice-performer situado num call center na Índia e eles não se vêem (só no final, através de uma webcam), mas o projeto é interessante justamente porque tudo acontece ao vivo, tem uma pessoa pagando para escutar uma narração de uma pessoa que às vezes inventa ficção... é teatro – mesmo se o espectador no final da peça não tem para onde aplaudir. A nossa sociedade desenvolve muitas novas formas de representação. Não adianta o teatro insistir na quarta parede e no coletivo como critérios para o teatro. Não gosto da palavra performance. O jogo de papéis no teatro e lá fora na vida é um ótimo instrumento para estudar novas formas de comunicação.

P. – A sua formação foi na área de artes plásticas. Como você estabeleceu, em seu trabalho criativo, o elo entre esse domínio e o teatro?

R. – Primeiro trabalhei como jornalista, depois estudei um pouco de filosofia, daí mudei para as artes plásticas e terminei em Giessen, perto de Frankfurt, onde existe uma faculdade muito especial de “ciências de teatro aplicadas” – um pouco de tudo, mas não me formei em nada. Acho que o mais importante foi não aprender nenhuma técnica em especial. Assim ficou claro que não se trata de aprender como fazer bem algo, mas de saber bem o que fazer.

P. – Você trabalha em dois coletivos: o Rimini Protokoll e o Hygiene Heute. Por que o desejo da autoria coletiva? Quais as especificidades de cada um desses coletivos?

R. – Hygiene Heute não existe mais, porque meu colega Bernd Ernst desistiu de fazer arte. Hoje trabalho mais com Lola Arias (escritora e diretora argentina com a qual realizei Chácara Paraíso com dezessete policiais e familiares de policiais no SESC Paulista). Com Helgard Haug e Daniel Wetzel formo o Label Rimini Protokoll. Prefiro usar o termo label (que significa marca, rótulo, selo, como os selos de produção de discos) à palavra coletivo. Não vivemos juntos, só compartilhamos um escritório no HAU-Theater em Berlim e temos um website juntos (www.rimini-protokoll.de), publicamos livros, obras de teatro, peças radiofônicas e vamos levando, já temos sete anos de discurso comum. Às vezes encenamos juntos, às vezes separados. Não importa tanto quem realmente tem a autoria de um projeto ou quem dirige, mas o interesse documental que perseguimos em todos esses projetos.

P. – Como surgiu a idéia de peregrinar criativamente pelo mundo, intervindo sobre a realidade de cada local escolhido?

R. – Sempre nos interessamos muito pelo contexto de um teatro. Estes prédios são feitos para isolar o indivíduo do seu ambiente. Sempre que entro num teatro me dá vontade de abrir todas as janelas. E, quando assisto a uma obra, me interesso muitas vezes mais pelas vozes abafadas de espectadores conversando um com o outro do que pelos eventos artificiais em cena. Fizemos um trabalho no qual convidávamos mulheres de 80 anos de um asilo de velhos, que moravam do lado de um teatro, para fazer uma obra conosco sobre a Fórmula Um. Também instalamos uma forma de teatro vigilante num décimo andar em Hannover, de onde oitenta espectadores assistiram com binóculos ao que acontecia numa praça pública, oito andares abaixo deles.
Isso foi durante uma onda de interesse pelo espaço público e por site-specific-pieces. Hoje o mundo tem cada vez menos lugares site-specifics, e cada vez mais eixos intercontinentais criados pelos fluxos do capital global. Por isso trabalho com caminhoneiros búlgaros na Alemanha (onde eles trabalham sem morar lá) ou – junto com Lola Arias – como em Airport Kids, estudo comportamentos de crianças estrangeiras num colégio internacional na Suíça. São filhos de diplomatas ou de executivos e vão formar a próxima geração de dirigentes.

P. – De onde você parte para imaginar e realizar suas obras?

R. – Às vezes são convites de um festival ou de um teatro que quer aplicar o nosso interesse pelo estudo sócio-semântico à sua cidade, às vezes são encontros ocasionais com uma situação muito teatral, como uma visita a um clube de mini-trens com todas as suas maquetes, ou o encontro de acionistas da Daimler Crysler, onde os quatro mil acionistas assistem a um espetáculo que é muito teatral e muito real ao mesmo tempo. Você assiste e se sente numa obra de teatro, mas é um teatro determinado pelo poder do capital. Pelo coeficiente de desempenho da bolsa de valores.

P. – Como você constrói a dramaturgia de suas obras? Como interagem o registro documental e a ficção?

R. – O ponto de partida são os seres humanos: eles são os protagonistas. Eles trazem sua biografia, que retrabalhamos no intuito de fazer um retrato deles – escrito em primeira pessoa. Trabalhamos quase como ghost writers deles. Mais tarde a biografia se transforma a partir do encontro com os outros elementos, com uma cenografia ou uma ação. Os caminhoneiros búlgaros de Cargo Sofia, por exemplo, e os protagonistas/cobradores de Matraca Catraca (num ônibus em Salvador, na Bahia) dirigem enquanto falam. Nos engarrafamentos e na velocidade, a narração é confrontada com muita improvisação. Gosto quando um texto se confronta com imprevistos. Quanto mais uma noite difere da seguinte, mais essa obra se diferencia de um filme, que vai ser sempre a repetição do mesmo, sem alterações, exatamente do mesmo jeito. Como espectador, gosto da sensação de poder descobrir algo, que só eu vejo.

P. – Se o propósito não é contar histórias, mas sim estimular a percepção do público em relação a aspectos problemáticos da realidade social, o que você espera do espectador como resposta ao seu trabalho?

R. – Eu não quero calcular nem desejar nenhuma reação específica. Gosto de passar a palavra a pessoas que normalmente não são ouvidas no teatro a não ser através de uma forma de representação que está distante delas e na qual elas aparecem como episódios nos jornais ou na televisão, sem estar lá, fisicamente presentes. Teatro pode ser uma forma de próxima-visão em vez de televisão, literalmente: visão-distante. Ver e perceber é experiência em si. Muitas vezes, durante a conversa depois de uma apresentação, os espectadores querem falar mais sobre o tema, sobre os protagonistas e a vida deles do que sobre a forma e a arte. É que eles passaram por todo um processo de identificação com alguém que não é ficção, mas vive num outro núcleo da vida urbana, diferente daquele que o espectador costuma freqüentar.


P. – Na criação de algumas obras você inclui performers com os quais partilha a autoria do trabalho; em outras, os participantes não são atores. O que determina a escolha de uma ou outra forma de colaboração?

R. – Justamente os que não são atores partilham a autoria do trabalho porque dizem coisas vividas por eles.  Decidimos juntos o quanto eles querem tornar público daquilo que viveram. Para mim, é muito importante saber no teatro quem está dizendo o que diz: por que diz aquilo e de onde a pessoa vem...

P. – Qual o espaço da improvisação no seu trabalho? E o lugar do acaso?

R. – Em Physik havia cenas que duravam o tempo de um dado experimento. Por exemplo, derramar uma quantidade de papéis com um zeppelin operado por controle-remoto ou fazer cair uma torre de papelão com uma caixa de som, por meio da vibração emitida... Às vezes esperávamos quinze minutos para o zeppelin voar na sala, outras vezes só três minutos. Em Europa tanzt, os protagonistas não ensaiaram, eram porquinhos-da-índia, que representavam o congresso de Viena da Europa pós-Napoleão, uma Europa feita de verduras. Só os espectadores escutavam, por meio de fones, as análises de um historiador.

P. – Na experiência do Hygiene Heute, vocês se referem aos ready mades teatrais. O que querem dizer com isso?

R. – Era uma referência a Duchamp e aos seus objets trouvés. Às vezes encontramos uma pessoa que já é tão perfeita no que faz que não é preciso ensaiar nada: um policial do canil treinando o cachorro já é um espetáculo em si, um revendedor de toneladas de carne no Mercado central de Madrid, observado pela janela do caminhão de Cargo Sofia não precisa de ensaios, porque sabe como contar de onde sua mercadoria vem e em que velocidade...
Mas nem todos os nossos trabalhos são ready mades teatrais. A maioria não tem nada a ver com isto, porque ensaiamos três meses juntos para descobrir uma história essencial de um protagonista que seria impossível adivinhar de saída.

P. – Em seus trabalhos, há presença freqüente de animais. Em que medida você incorpora a imprevisibilidade do comportamento deles?

R. – Quando você assiste a um macaco no zoológico ou a seu cocker spaniel em casa, você tenta decifrar o comportamento dele do mesmo modo como você talvez faça quando assiste a uma obra de teatro. Por que olha para baixo? O que ele quer dizer com isto? E talvez o macaco e o cachorro se perguntem a mesma coisa assistindo a você. Staat. Ein Terrarium foi uma obra com duzentas mil formigas. Uma instalação de um mês numa galeria. O ser humano inventou, para descrever o comportamento animal, toda uma série de denominações que são derivadas do comportamento humano. As formigas moram em “colônias”, formam “ruas”, têm uma “rainha” e “soldados”, formam “uma sociedade totalitária” etc. – Essas palavras e expressões indicam que os humanos gostam de observar animais como modelos da sua própria situação. Assim, o mundo animal pode ser o espelho perfeito, uma tela de projeção.

P. – Como se inserem, na sua proposta de trabalho, as peças radiofônicas?

R. – Com o desenvolvimento de softwares e hardwares baratos, que permitem substituir um estúdio completo de som, nos anos 1990 se tornou possível fazer peças radiofônicas em casa. A Alemanha tem uma grande tradição de peças radiofônicas, tem programas semanais dedicados ao gênero em todas as rádios estatais. Para mim, foi uma maneira muito barata de produzir obras em casa, sem nenhum subsídio. Assim, financiei os meus estudos. Ainda hoje gosto muito de obras que funcionam sem o visual. O mundo já está tão cheio de imagens que, às vezes, basta emoldurá-las com sons. Assim funcionaram os audiotours que inventamos faz uns oito anos (ao mesmo tempo que Janet Cardiff). Faz pouco tempo os meus amigos argentinos do grupo Monocultura levaram um trabalho parecido para São Paulo. Gosto muito desta manipulação acústica que te guia pela cidade e transforma a percepção que você tem dela.

P. – Você apresentou no Brasil obras criadas em outros países, como Torero Portero, além de ter partido de nossa realidade para criar outras obras, como Matraca Catraca e Chácara Paraíso. Comente essas experiências, incluindo a recepção do público,

R. – Torero Portero foi um trabalho sobre porteiros em Córdoba: os porteiros, na frente do prédio, narravam sua vida e o público escutava tudo da perspectiva de um porteiro, pelas janelas do térreo de um edifício, no lugar onde habitualmente os porteiros ficam. Gostei de levar esse trabalho para o Rio e para São Paulo, porque porteiros são figuras muito presentes nessas metrópoles brasileiras, e tematizamos como eles observam e são observados numa função de vigilância. Um pouco como os policiais. Para Chácara Paraíso busquei, junto com Lola Arias, policiais paulistas que ficavam em quartos nos quais instalamos fotos e objetos e utensílios da vida deles. O público circulava muito perto deles por esses quartos que eram quase como museus da vida deles. Sem farda, os policiais escapavam de ser julgados a partir do preconceito que existe contra eles. Um discurso altamente contagiado por ideologias se transformou em encontros muito pessoais que não julgaram nem propagaram a imagem pública do poder executivo e resultou disso um arquivo sobre o que acontece com uma biografia quando a pessoa é treinada para matar em poucos segundos.

P. – Há um viés comum aos países latino-americanos nos quais você trabalhou?

R. – Argentina, Colômbia e Brasil têm histórias de teatro muito diferentes. Carecem de apoio significativo do governo para a cultura, como existe, por exemplo, na Alemanha, mas os três países comprovam que se mantém um discurso artístico mesmo sem meios.

P. – Quais são as suas principais estratégias de produção? Como você busca financiamento para seus projetos?

R. – Na maioria são teatros e festivais encomendando projetos. Fundos públicos. A cidade de Berlim nos apóia. Para muitos trabalhos, procuramos toda uma série de co-produtores.

P. – Em 2007, o Rimini Protokoll criou Estréia: A visita da velha senhora, no Schauspielhaus Zürich, convocando espectadores e pessoas envolvidas na preparação da primeira apresentação da peça nesse teatro, em 1956, para dividirem com o público atual as suas recordações. Esse seria um espetáculo emblemático da relação que você pretende estabelecer entre o teatro dramático e as suas intervenções?

R. – Nós nos interessamos pela história do prédio do Schauspielhaus Zürich, que foi onde estreou essa peça que hoje é a peça mais exportada na história do teatro suíço. O que aconteceu na montagem de estréia, em janeiro de 1956, além do texto (que hoje não passa de uma comédia bem pensada)? O que sobreviveu do frágil momento teatral? Hoje podemos gravar tudo digitalmente, e onde vai parar o que é vivo nessa relação ritual entre público e performers? – A nossa peça, meio ano depois de sua estréia, terminou... O que vai ser lembrado dela em cinqüenta anos?

P. – Você espera que o seu teatro seja lembrado, daqui a cinqüenta anos? Você vê nele alguma condição de permanência?

R. – Florian Malzacher e Miriam Dreysse acabaram de publicar um livro sobre o Rimini Protokoll [Berlim: Alexander Verlag, 2007] ] ]]  ]. Durante o processo da busca de materiais nos demos conta de que a maioria dos projetos que foram realizados há apenas oito anos ou não estão documentados ou, quando estão, as fitas U-matic utilizadas não podem ser lidas pela tecnologia atual. Assim, provavelmente, em breve vão desaparecer também todas as memórias dos projetos que realizamos agora. E não faz mal. Quando estudante, eu detestava assistir em vídeo a obras dos anos 1960. Não se transmite nada. Teatro não serve para o passado. Por isso é uma arte tão viva.