Ver com outros olhos

sobre Chácara Paraíso no festival Alkantara

Von Rita Martins

29.05.2008 / Suplementos PÚBLICO

Al-kantara, que quer dizer "a ponte" em árabe, é o nome justo para um festival que reúne, liga e confronta o que a tradição, a política e ou a geografia separou - disciplinas artísticas, países, culturas. Este ano, a programação de Mark Deputter reflecte a necessidade de abrir um espaço vital e político às "vozes dissonantes", aquelas que ainda são capazes de sugerir alternativas ao homo oeconomicus, interiorizado por cada um de nós, e ao pensamento único, induzido pela governação económica das populações a nível global.
Abrir fissuras nos hábitos, revelar mundos escondidos e criar pontes entre a vida e a ficção, são propostas de dois espectáculos tão distintos como Chácara Paraíso e Bonanza. Ambos se reportam a duas regiões do continente americano: o primeiro é o local onde se encontra o maior centro de formação da Polícia Militar da América Latina e situa-se em São Paulo; o segundo é o nome de uma antiga cidade mineira dos Estados Unidos, que já teve 6000 habitantes e agora tem 7. E as semelhanças, como é óbvio, terminam aqui.
Em Chácara Paraíso, da argentina Lola Árias e do suíço Stefan Kaegi, entramos no estranho mundo de um polícia quando, na varanda do Palácio de Santa Catarina, munidos de binóculos e de auscultadores nos ouvidos, uma voz entra na nossa cabeça, indicando os perigos e ameaças da rua. Todos os transeuntes são suspeitos - na Avenida Paulista ou, neste caso, no jardim do Adamastor. Assim preparados, somos convidados a iniciar um percurso pelas salas do palácio. Nelas descobrimos fotografias, objectos preferidos, cartas e, no centro, o narrador (polícia ou ex-polícia) é protagonista e intérprete da sua própria história. Cada recinto é um museu vivo ou uma instalação biográfica. Ao circular nesse labirinto artificialmente concebido, a percepção transforma-se, as representações sociais oscilam e as interpretações acumulam-se num espaço que se abre, de forma invulgar, à intersubjectivadade. O frente-a-frente é insólito e provoca múltiplas questões sobre a ambígua fusão entre arte e vida - políticas, sociais e artísticas. "Não acreditem em nada do que ouçam e só em metade do que vejam", seria uma conclusão possível, mas este é o aviso inicial do extraordinário documentário do colectivo belga, Berlin. 
Apresentado simultaneamente em cinco ecrãs (um por cada habitação), colocados sob uma maquete que reproduz a vila, Bonanza impressiona não só pelo virtuosismo técnico - das sequências e jogos entre imagens, dos ritmos de edição e montagem - como pela perícia narrativa. Os sete habitantes da cidade abandonada descrevem o quotidiano calmo de quem tem o tempo nas mãos. Com as Montanhas Rochosas a recortar o horizonte, o casal idoso, Ed e Gail, Richard (padre), Mary (astróloga), Darva e Shikiah (têm contactos privilegiados com o sobrenatural), Mark (está onde Deus quer) vivem no paraíso que procuraram, isolados do mundo e uns dos outros. É o que parece. O local idílico revela-se um microcosmos tenebroso, recheado de maledicência, boatos, intrigas, ódios, conflitos. Vê-se com um sorriso nos lábios - ao princípio, embevecido, depois sardónico e, no final, bastante amargo. Um retrato cinematográfico de uma cidade excêntrica, que é a reprodução irónica do ser-se humano entre humanos. Inquietante.